Apesar da estabilidade econômica e do avanço social alcançados, o Brasil ainda tem mais de 500 mil crianças que “não existem” oficialmente, ou seja, que não foram registradas ao nascer. Foi a primeira vez que a informação constou no questionário do Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que compilou os dados sobre as crianças que não haviam sido registradas até os dez anos de idade. São 599 mil crianças nessa situação em todo o país. Entretanto, juízes e especialistas afirmam que o número de brasileiros “invisíveis” é muito maior, porque o censo não incluiu a população adulta.
Com população indígena e ribeirinha, os Estados de Roraima, Amazonas e Mato Grosso do Sul são os que possuem o maior número de crianças sem documentos. São Paulo lidera no Sudeste, com 81 mil crianças sem identificação civil, e o Rio aparece na sequência, com quase 30 mil brasileirinhos sem registro.
Sem registro de nascimento, as crianças não podem ser vacinadas, nem mesmo matriculadas na escola. Quando adultos, também não poderão ter CPF ou carteira de trabalho, não terão direito a nenhum tipo de benefício trabalhista e não poderão tirar título de eleitor. Na velhice, também não poderão receber aposentadoria da Previdência Social. O documento que registra o nascimento de uma pessoa também é necessário para atestar a sua morte.
Coordenadora de um projeto que pretende erradicar o sub-registro no Estado do Rio de Janeiro, a juíza Raquel Chrispino diz que a invisibilidade social é um problema grave, porque “são pessoas que a sociedade finge não existir”.
Há quatro anos juíza da Vara de Família de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, Raquel conta que, quando assumiu, percebeu uma grande demanda de pessoas que procuravam a Justiça buscando documentos. Ela então criou um projeto para ampliar o acesso ao registro civil e à documentação básica.
A juíza explica que o núcleo criado no Rio trabalha em duas frentes: ajudar os juízes em casos de registros de adultos em que é preciso investigar dados “perdidos no tempo após décadas” e estimular as mães a registrarem seus filhos logo após o nascimento.
Efeito cascata
O processo para tirar a 2ª via de documentos em casos de pessoas que migraram de um Estado para outro, por exemplo, poderia levar mais de um ano. No Rio, esse procedimento demora hoje, no máximo, dois meses. Raquel explica que garantir o resgate da documentação perdida é fundamental, porque evita que as próximas gerações sofram do mesmo problema.
– A dificuldade em regularizar os documentos perdidos gera um efeito cascata nas próximas gerações, porque os pais não conseguem registrar os filhos.
A certidão de nascimento é o primeiro documento com valor legal na vida de um cidadão e pode ser feita em qualquer cartório gratuitamente. Ela também é necessária para inscrição em programas sociais, como o Bolsa Família.
Sem conseguir o restante da documentação básica, quem não é registrado não poderá obter crédito, casar e abrir conta em banco. Pacientes que precisam de medicação controlada também não conseguem ter acesso aos remédios.
Cinco milhões “sem pai”
Depois de tirar 28 milhões de brasileiros da pobreza no governo Lula, a presidente Dilma Rousseff assumiu o compromisso de erradicar a miséria no Brasil, que tem 16 milhões de pessoas vivendo com menos de US$ 1 (R$ 1,55) por dia. Para atingir esse objetivo, o governo federal pretende ampliar o Bolsa Família para 800 mil novos beneficiários até 2013.
Entretanto, para chegar até a população que hoje tem direito ao benefício, mas ainda não o recebe, será preciso tirar essas pessoas da “invisibilidade”, o que dependerá da atuação coordenada de municípios, Estados, corregedorias dos poderes judiciários estaduais e cartórios.
O governo federal não possui uma base de dados sobre a população que nunca teve ou perdeu os documentos.
O CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, coordena uma campanha de mobilização nacional para o registro civil de nascimento e a documentação básica.
Um dos focos é a instalação de unidades intermediárias, espécies de cartório em maternidades de todo o país para que os pais tenham a opção de registrar os seus filhos no local de nascimento. Ricardo Chimenti, juiz auxiliar da Corregedoria do CNJ, avalia que os números revelados pelo Censo 2010 “já foram mais alarmantes”. Ele diz que, em um primeiro momento, foi criado um sistema aberto com a relação de todos os cartórios do país.
– Criamos um sistema aberto com todos os cartórios extrajudiciais de modo que qualquer cidadão possa acessar e ver dados como endereço, telefone e o responsável.
A análise dos dados recebidos pelos cartórios revelou a existência de um grande número de jovens que não têm o nome dos pais em seus documentos. Em 2009, o país tinha quase 5 milhões de crianças e adolescentes de até 18 anos que possuem apenas o nome da mãe em suas certidões.
Chimenti diz que o CNJ resolveu ampliar o foco do projeto, criando a campanha Pai Presente, estrelada pelo jogador de futebol Ronaldo Fenômeno para estimular os homens a reconhecerem seus filhos em cartório.
– Além do problema de natureza psicológica, esse indivíduo pode ter problemas em questões sucessórias (recebimento de herança, por exemplo) e com o recebimento de pensões.
O juiz do CNJ afirma que só no Estado da Paraíba foram 1.200 reconhecimentos voluntários de paternidade desde a implantação do projeto em menos de dois anos.
Hojerondonia:
Mariana Costa, do R7: